Preparo, compatibilidades e contaminantes das soluções parenterais de uso pediátrico

Farmacêutica: Márcia Cristina Moraes Szczupak
Prof.: Dr. Rubens Feferbaum

 As soluções parenterais devem ser formuladas em farmácias especializadas segundo as técnicas de assepsia determinadas pela legislação em vigor (portaria n0 272, de 8 de abril de 1998, da Secretária de Vigilância Sanitária, do Ministério da Saúde) objetivando-se melhor padronização e facilidade de manuseio. As soluções devem ser preparadas seguindo protocolos previamente estabelecidos, com base em padrões técnicos de compatibilidade, estabilidade, esterilidade e identificação.

Para o preparo das soluções de terapia nutricional parenteral recomenda-se2:

a)  a adição de componentes compatíveis; b) o estabelecimento de políticas e procedimentos para a adição de medicamentos e/ou outros nutrientes; c) a elaboração de protocolos que definam quantidades máximas e mínimas de cada nutriente; d) a aprovação de um profissional de saúde que tenha conhecimentos sobre compatibilidades físico-químicas e interações fármaco-fármaco e procedimentos estabelecidas; e) o acondicionamento em recipientes compatíveis que garantam a manutenção da esterilidade e estabilidade, permitindo a inspeção visual durante o preparo, o armazenamento e a administração; f) a descrição no rótulo de todas as adições realizadas; g) rotulação com identificação do paciente, composição, velocidade de infusão, data e horário de validade e informações sobre a administração; h) o armazenamento sob refrigeração (temperatura entre 20C e 80C); i) evitar a adição de medicamentos e/ou outros nutrientes à solução parenteral posteriormente à preparação inicial, pois agrega riscos à sua esterilidade e estabilidade.

A esterilidade da nutrição parenteral durante a manipulação, armazenamento e administração é necessária para reduzir o risco de infecção e complicações2.

O crescimento microbiano é um fator preocupante no uso de terapia nutricional parenteral. Os microorganismos mais comumente isolados são os dos gêneros Staphylococcus, Streptococcus e Candida. O risco de crescimento microbiano na solução parenteral vai depender de variáveis como: a fonte de nitrogênio utilizada, a concentração de glicose, a presença ou não de lipídeos, vitaminas, albumina, pH e osmolaridade final do produto.

Para a manutenção de estabilidade físico química fatores como concentração, temperatura, pH e tempo de exposição da nutrição parenteral podem afetar a compatibilidade entre os seus componentes15,23.

 As emulsões lipídicas parecem ser os componentes mais frágeis das soluções parenterais. Estas emulsões são compostas de gotas de óleo dispersas na fase aquosa. Para prevenir que as duas fases ( água e óleo ) se separem, um agente fosfolipídeo emulsificante, a lecitina, é utilizado para estabilizar a mistura. O emulsificante atua como uma barreira mecânica e eletrostática que impede que as barreiras lipídicas se agreguem. O emulsificante mantém uma superfície com cargas negativas ( aniônica ) que é susceptível a neutralização por cátions. São estas cargas negativas que produzem as forças repulsivas necessárias para manter as gotas de óleo dispersas1,3,23.

 A alteração na estabilidade ocorre pela adição de altas concentrações de cátions divalentes, como o cálcio e o magnésio, e pela diminuição do pH, causando decréscimo do potencial de superfície nas partículas de gordura com redução das forças repulsivas necessárias para a prevenção da agregação. A solução de glicose normalmente é ácida e não deve ser adicionada diretamente à emulsão de lipídeos pois altera a integridade da emulsão. A maioria dos aminoácidos funciona como tampão e portanto como protetor da integridade da emulsão7,9,11,20,23.

 A adição de sais de bicarbonato à nutrição parenteral pode resultar na formação de gás dióxido de carbono e de carbonatos de cálcio e magnésio insolúveis. Em decorrência, é mais recomendável a utilização de sais precursores de bicarbonatos, como o acetato, por exemplo18. Os íons de cálcio e fosfato podem ser incompatíveis em solução, formando precipitados insolúveis de fosfato de cálcio. Conciliar as necessidades nutricionais de cálcio e fosfato a compatilibilidade dos dois íons em uma solução de volume restrito é uma dificuldade, particularmente importante nas preparações neonatais. Alguns fatores influenciam na precipitação entre o cálcio e o fosfato11,12,25:

·        pH: a solubilidade do fosfato de cálcio é dependente do pH. O fosfato de cálcio dibásico é muito insolúvel, enquanto o fosfato de cálcio monobásico é relativamente solúvel. Em pH baixo predomina a forma monobásica solúvel; mas a medida em que aumenta o pH, aumenta a disponibilidade de fosfato dibásico para se ligar ao cálcio e precipitar. Portanto quanto menor o pH da nutrição parenteral, mais cálcio e fosfato podem ser solubilizados;

·        presença de aminoácidos: os aminoácidos favorecem a estabilidade por não permitirem variações de pH e por formar complexos solúveis tanto com o cálcio como com o fosfato, diminuindo assim a concentração livre destes íons. Então, quanto maior for a concentração de aminoácidos, menor o risco de ocorrer precipitação;

·        temperatura: o aumento da temperatura diminui a formação de complexos solúveis dos aminoácidos com os íons de cálcio e fosfato, favorecendo a precipitação. Quanto maior for a temperatura, mais íons cálcio se tornam disponíveis e mais fosfato de cálcio dibásico se forma. Desta maneira, uma nutrição parenteral que permanece límpida, sem precipitados por duas semanas na geladeira, pode precipitar em 4-6 horas à temperatura ambiente. E à 37°C a precipitação ocorre em apenas uma hora;

·        fontes de cálcio: o uso de gluconato de cálcio diminui sensivelmente a precipitação do fosfato de cálcio quando comparado ao uso de cloreto de cálcio, devido à menor liberação do cátion para a solução;

·        tempo de estocagem: quanto maior o tempo de estocagem, maior o risco de ocorrer precipitação devido às alterações provocadas pela ação da luz, altas temperaturas, etc;

·        ordem de mistura: deve-se evitar o contato entre os íons cálcio e fosfato em soluções concentradas. Se a solução de fosfato é adicionada primeiro e a solução de cálcio bem depois, consegue-se aumentar substancialmente as quantidades de cálcio e fosfato misturados sem precipitação.

Os fatores que exercem uma influência crucial sobre a estabilidade das soluções parenterais pediátricas (3 em 1) são: pH (ótimo entre 5,5 e 6,0), produto Ca x Pi < 72 mmol2/L2 e a seqüência de mistura dos componentes5.

Tabela 8

Número da Solução

Componentes

#1

#2

#3

#4

#5

#6

Aminosynâ

2%

1%

       

FreAmine IIIâ

4%

2%

1%

1%

   

Glicose

20%

10%

25%

20%

10%

10%

PH

5,1

5,4

6,3

6,4

6,6

7,0a

a Ajustado com hidróxido de sódio

A compatibilidade de cálcio e fosfato foi avaliada em várias soluções parenterais para recém-nascidos. Foram utilizados gluconato de cálcio 10% e fosfato de potássio para se alcançar concentrações de 2,5-100 mEq/L de cálcio e 2,5-100 mM/L de fósforo. As amostras foram estocadas a 25 °C por 18 horas e depois de examinadas, foram aquecidas a 37°C por 30 minutos. A partir da precipitação observada, foram construídos gráficos de precipitação para cada formulação da Tabela 8. Na Fig. 1 as regiões sombreadas, à direita,  superior representam as amostras que ficaram com aparência visivelmente turva. A faixa intermediária representa as amostras que a princípio estavam transparentes mas após o aquecimento apresentaram cristais (faixa crítica). A faixa não sombreada representa as amostras que não apresentaram precipitação nestas condições24.

Tabela 9 (24)

Fósforo (mg/100mL)

Cálcio (mg/100mL)

Aminoácidos 1,25% + Glicose 5%a

Aminoácidos 2,5% + Glicose 10%a

200

50

75

150

50

100

100

75

100

50

100

125

25

150b

150b

a Com polivitamínicos e microelementos

b Concentração máxima testadA

Também foram mostradas as concentrações máximas de cálcio (na forma de gluconato)  e fósforo ( na forma de fosfato de potássio) fisicamente compatíveis por 48 horas à 4°C em duas formulações específicas conforme Tabela 9. Porém estas quantidades não são válidas para formulações com concentrações de aminoácidos e glicose diferentes, com outros componentes, ou valores de pH muito diferentes24.

Mesmo que a precipitação não ocorra no frasco, foi descrito que a cristalização de fosfato de cálcio pode ocorrer no equipo da bomba de infusão se a velocidade de infusão for muito pequena, como ocorre para muitos recém-nascidos. Vários casos de oclusão de cateter também foram descritos24.

Normas específicas para evitar as interações cálcio-fósforo já foram publicados em vários locais18. Infelizmente não existe uma “fórmula” que garanta a compatibilidade entre estes dois íons na nutrição parenteral. Cada prescrição deve ser avaliada individualmente e a utilização destas normas pode nortear a análise das diversas variáveis acima descritas, com o intuito de auxiliar na previsão do risco potencial de precipitação. Algumas alternativas são sabidamente úteis para diminuir o risco de precipitação:

·        aumento da concentração de aminoácidos;

·        aumento da concentração de glicose;

·        diminuição do pH;

·        alteração da ordem de adição dos componentes na preparação.

No caso destes artifícios não serem suficientes, a concentração de cálcio e fósforo deve ser diminuída.

Uma alternativa para se atender às prescrições neonatais, que necessitem de grandes concentrações de cálcio e fósforo, é a utilização do fósforo orgânico (glicerofosfato de cálcio ou D-frutose-1,6-difosfato de sódio ou glicose-1-fosfato de sódio). São substratos orgânicos que servem como fonte dos dois elementos e não ocasiona precipitação quando utilizados nas concentrações que atendem às necessidades dos neonatos. Estudos in vitro mostram uma maior solubilidade dos fosfatos de cálcio orgânicos. Estudos in vivo indicam que a administração de doses equimolares de cálcio e de fósforo na forma de substratos orgânicos é tão efetiva quanto as doses convencionais de sais inorgânicos nos neonatos em terapia de nutrição parenteral, quer na retenção dos minerais ou na manutenção de seus níveis bioquímicos11,12.

Temperatura e tempo são fatores importantes na estabilidade físico-química das nutrições parenterais. Elas não devem permanecer mais de vinte e quatro horas em temperatura ambiente, e quando armazenadas devem ficar sob refrigeração e protegidas da luz18. A determinação do prazo de validade pode ser baseada em informações de avaliações da estabilidade físico-química dos componentes e considerações sobre a esterilidade, ou através da realização de testes de estabilidade. Vitaminas são susceptíveis à degradação pela luz e às reações químicas e devido a este fato é melhor que elas sejam adicionadas à nutrição parenteral imediatamente antes da infusão18,22.

Quanto aos contaminantes químicos existem evidências de que as soluções parenterais, em alguns casos, contêm quantidades significantes . Eles se originam dos vários substratos, aditivos e materiais plásticos utilizados no preparo das soluções21.

Altas concentrações de alumínio têm sido encontradas em ossos, urina e plasma de crianças recebendo terapia intravenosa. O alumínio é o principal metal contaminante identificado e que pode causar efeitos tóxicos quando presente nas nutrições parenterais. Os sais de cálcio, fosfatos e microelementos são as principais fontes deste metal. No entanto, as soluções de aminoácidos também podem conter alumínio. Os neonatos prematuros são particularmente de alto risco para a toxicidade do alumínio porque necessitam de grandes quantidades de cálcio e fosfato e ainda apresentam função renal imatura.  Diversos estudos demonstram que as soluções parenterais contêm quantidades de alumínio acima da dose considerada segura ( ~2mg.Kg-1.d-1 ). As implicações clínicas da exposição excessiva ao alumínio, incluem o risco de alterações neuromotoras, encefalopatia, osteomalácia e anemia. A questão sugere a necessidade de novos produtos injetáveis de cálcio e fosfato, livres de alumínio, para utilização em terapia de nutrição parenteral e destaca a importância da informação do conteúdo de alumínio nos rótulos dos produtos utilizados como substratos nas soluções parenterais14,18,19,21,24.

Outros metais como zinco, cromo, manganês, cobalto e boro também têm sido isolados em soluções parenterais. As principais fontes destes contaminantes são os aditivos de pequeno volume, em particular os eletrólitos. Porém as soluções de aminoácidos também podem contribuir para esta contaminação. Especificações devem ser estabelecidas para o controle dos níveis máximos permitidos para estes contaminantes. A oferta de aditivos com um nível reduzido e conhecido destes metais potencialmente perigosos é então, prioridade e necessidade a serem reconhecidas pelas autoridades regulamentadoras1,10.